segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Um Mar de Sutilezas

Muitas vezes certos gêneros cinematográficos são tão contaminados por clichês e pela repetição de modelos outrora bem-sucedidos que o espectador mais crítico já entra no cinema cheio de opiniões formadas antes mesmo de assistir ao filme. É possível que isso aconteça com Ligeiramente Grávidos (Knocked Up).

O filme, que tem direção e roteiro de Judd Apatow, conta a história de Ben (Seth Rogen) e Alison (Katherine Heigl), o típico caso onde os opostos acabam por se atrair. Alison é uma repórter iniciante que trabalha em um canal de celebridades e acaba de receber uma promoção. Ben é um homem rechonchudo de vinte e poucos anos que, junto com um grupo de amigos, vive em uma eterna adolescência.

Por obra do acaso, os dois se encontram em uma boate e acabam conversando, dançando e bebendo um bocado, não demorando muito para que resolvam passar a noite juntos. O que era para ser apenas uma noite se torna algo muito maior. Oito semanas depois a garota descobre que está grávida.

É nesse ponto que o filme afasta-se das obviedades e começa a trilhar seu próprio caminho. O relacionamento do casal principal flui de forma natural, começando com uma amizade e evoluindo até o amor. O oposto do que acontece com o casamento de Debbie (Leslie Mann), irmã de Alison, e Pete (Paul Rudd). A crise no casamento da irmã acaba afetando Alison, pois começa a se questionar se pode ser feliz com um homem tão diferente dela. Por conta disso, às vésperas do parto, a sua relação com Ben fica abalada.

A interação entre o elenco dá às dúvidas e conflitos de cada um dos personagens uma sensibilidade invejável. A dupla formada por Ben e Pete fala sobre as ambições, medos e frustrações que afligem boa parte dos homens antes do casamento de forma muito verossímil. Da mesma forma, Alison e Debbie ajudam-se a controlar a insegurança que as dominava.

O ponto alto do filme sem dúvida alguma é o roteiro. A leveza que dá o tom de todo filme constrói um clima no qual as emoções e diálogos sérios respeitam a inteligência do espectador, criando um motivo coerente para cada acontecimento.

“Ligeiramente Grávidos” é uma excelente diversão. Humor afiado, verossimilhança e sensibilidade transformam a obra em um mar de sutilezas, se comparado à que filmes similares apresentam geralmente. Um filme que agradará tanto o fã de “besteirol” quanto quem gosta de filmes sobre relacionamentos.

[Resenha originalmente publicada em "UERJ Viu"]

domingo, 2 de setembro de 2007

O paradoxo da triste graça (ou A graça do triste paradoxo)

O trem carioca é um meio de transporte muito democrático. De tudo se vê e se ouve dentro dos vagões: de fofocas (para distrair a viagem) à gente se arrastando pelo chão pedindo ajuda financeira. Faz uns dois dias meu companheiro Igor Mello me contou um causo bem engraçado à primeira vista, mas que, cada vez que lembro ou conto para alguém o que o ele me reportou, sinto algo de triste, sei lá, de pena, de raiva...

Um sujeito pregador da palavra de Deus, muito comum nos tchotchoques-tchotchoques da vida, surpreendeu com o seguinte trecho (adaptado, improvisado, aumentado, mas não inventado!) de seu monólogo:
"(...)porque, Senhor, graças a Ele, depois que entrei pra igreja, minha vida mudou. Depois que larguei aquela vida, meu Deus, o Senhor só me deu graças e mais graças e a minha vida melhorou muito. Não gosto nem de imaginar, Senhor, como sofria quando ainda não tinha o Senhor Jesus. Minha vida era muito horrível, passava necessidade, Senhor, eu e minha família. Minhas crianças... ah, minhas crianças! Como é bom ter Jesus dentro de mim! Minha vida mudou! Minhas crianças, não gosto nem de lembrar, Senhor, antes de eu assumir Jesus em minha vida, elas sofriam muito, ó, meu Deus! Não gosto nem de lembrar que tinha que dar refrigerante mendingão [sic] para elas beberem... hoje, meu Deus, obrigado, Senhor, elas tomam Coca-cola!!! Deus me ajudou muito depois que eu o aceitei em minha vida! Hoje eu posso comprar Coca-cola para as crianças beberem! Obrigada, ó, Pai!"

Embora num primeiro momento isso renda umas boas gargalhadas, depois de uns instantes achei isso tão triste... mas tão triste! Bem, não sei se vocês pensam como eu, aliás, não faço a menor questão que pensem. Quando projetamos o Pensamento Alheio eu e Igor decidimos o teor altamente (e livremente) opinativo dos textos. Mas então, voltando ao episódio: o que me deixou triste e me fez refletir por uns longos minutos não foi a Coca-cola em si. Até porque não tenho muita coisa contra a marca. Não sou comunista nem ativista nem nutricionista. Sou só uma menina um pouco vaidosa que tem medo de mais celulites. Tá, também não gosto muito da onipresença da Coca-cola e de sua superequipe de marketing que consegue fazer da marca um sinônimo de refrigerante, uma metonímia. Mas isso não tem nada a ver. Os fabricantes são apenas muito competentes e se sentem muito à vontade no sistema capitalista da ordem política global. O buraco é mais embaixo.

As tristezas oriundas do depoimento inflamado são duas: em primeiro lugar, como pode as pessoas associarem a imagem de Jesus Cristo a um caixa eletrônico? Vejam só! Nem disfarçar, disfarçam! Em muitas celebrações cristãs (e aí incluo as católicas e as protestantes) o combustível parece não ser mais a fé, e sim o dinheiro. Você dá muito dinheiro para receber muito muito muito mais dinheiro de volta, porque, afinal, essa é a grande meta da vida! É pra isso que servem os templos, não? Para que sejamos sempre prósperos e mais prósperos! Esse é um objetivo cada vez mais explícito. Que? Ahn? Crescimento espiritual? Amor pelo próximo? Ahn? Cultivo da fé? Combate ao egoísmo, ao individualismo? Dar graças a Deus? Que? Só se for pela mansão na Barra da Tijuca e pelo meu carro importado, né? Ricos de espírito? Sem problemas! Jesus devia estar é meio chapadão quando disse que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico ir para o céu!

Calma, gente, não fiz votos de pobreza, não sou ativista nem comunista, como já disse. Também não acho que ser rico é errado, que os ricos deveriam morrer, nada disso. Só me deixa indignada essa hipocrisia dos ditos cristãos. Como pode? Pregam uma coisa, mas têm uma ideologia materialista que os domina completamente? Isso é controverso demais. Ultrapassa os limites do paradoxo tolerável.

A outra coisa que me deixou triste foi ter um exemplo, outro exemplo, dentre tantos, do lado mau da ideologia capitalista, que é essa coisa de querer ter sempre mais, sempre do melhor, sendo que o melhor - e está aí a raiz do problema - não é o que é melhor pra você, não é o que você decide a partir de seus gostos e seu discernimento. O melhor, nesse caso, é o que os poderosos nos impõem. Isso é lamentável. Saber que todos nós estamos cercados e desarmados, e muitas vezes agimos não por vontade própria, mas por pressão de uma sociedade na qual os mais fortes determinam o que os mais fracos têm de fazer, como se comportar. Não que os mais fortes não possam influenciar os mais fracos. Isso é natural, até. O problema é quando a influência, ou melhor, a ordenação se dá de forma extremamente injusta, desleal, desumana. É quando nós, que embora fracos temos a capacidade de pensar, acabamos como vítimas num determinismo imutável.

Mas é melhor parar por aqui porque esse tipo de coisa é muito polêmico, e, como declarada vítima que sou, tenho que evitar causar polêmica para manter o fluxo "natural" da vida. Essa é minha função como colega de classe do pregador do trem.